A INTERNET NA ENCRUZILHADA
O crescimento vertiginoso da Internet e a ampliação dos seus impactos não cessam de surpreender até os mais renitentes céticos. Contudo observa-se a passagem de uma fase de surpresa e encantamento novidadesco para um estágio de estupor e desconfiança. A população dos internautas já superou a marca de um bilhão de pessoas em todo o planeta. Mas, em alguns casos, a euforia com a expansão desse recurso tecnológico começou a ceder lugar a um sutil desconforto e, até mesmo, aberta oposição.
Tudo isso em plena caminhada rumo ao segundo bilhão de internautas e quando já se comemora (New Scientist, julho, 2009) o advento da internet interplanetária, com a realização dos testes de novo protocolo na Estação Espacial Internacional.
Não se pretende aqui reconstruir toda a evolução recente desse poderoso veículo. Mas, vale a pena registrar algumas perplexidades recentes diante do fenômeno. Como, por exemplo, a verificada em um artigo de 2008 que circulou nos meios especializados. Em "Google está formando uma geração de idiotas?” o autor Nicolas Car questiona a validade do instrumento Internet ao indagar sobre as consequências cognitivas da sua difusão, sobretudo entre os jovens. Alinha seus argumentos, a partir da observação da sua própria perda progressiva de paciência e concentração diante de textos longos (superiores a três páginas!). As suas surpreendentes e polêmicas observações estimulam a reflexão.
Aos questionamentos de natureza cognitiva, juntam-se outros de variadas motivações de base econômica, e que ampliam o leque das contestações. Nos casos mais evidentes e explícitos, supostos direitos afetados no campo da propriedade intelectual surgem com frequência.
Além desses fatos, há a competição com a televisão, com os jornais, o embate com as empresas operadoras de telefonia fixa e móvel. Tudo isso ao mesmo tempo confunde e irrita artistas e criadores, sobretudo os mais afeitos aos circuitos tradicionais. Nesse mar de conflitos, empresas estabelecidas em mercados supostamente "estáveis" se vêem submetidas à necessidade de rever seus modelos de negócio, especialmente no que diz respeito à comercialização dos seus produtos. As mais conservadoras buscam, arduamente, proporcionar uma sobrevida aos seus produtos e modelos de negócios em crise: vendas de discos e filmes, por exemplo.
Do encantamento à penalização, a trajetória da Internet foi surpreendentemente rápida: os mais de um bilhão de internautas, como num passe de mágica, passam da condição de estratosféricos consumidores potenciais para a de virtuais fraudadores! A almejada democratização da Internet cede lugar a expressões restritivas e antipáticas tais como: sancionar, punir, vigiar, cobrar, impedir, desencorajar enfim.
Embora ainda variando de intensidade, esse fenômeno é perceptível lá fora e aqui.
Esse é o caso da polêmica a respeito da lei Hadopi na França, que prevê o corte do acesso à Internet, como punição ao internauta, nos delitos na área de propriedade intelectual (pirataria). Contudo, talvez o mais surpreendente dos casos venha da distante China, onde duas iniciativas legais se destacam nesse contexto. Uma bastante inventiva, inovadora, e – por que não dizer? - também curiosa: criou-se um imposto sobre transferência de propriedade de bens virtuais; bens estes adquiridos durante e dentro dos jogos em Rede. Pragmática, exige o recolhimento do imposto em dinheiro real.
A segunda iniciativa visa a objetivos mais convencionais; diz respeito ao controle da Grande Rede.
A China adotou uma diretiva que exige, de todos os fornecedores de computadores pessoais no país, a inclusão de um software sofisticado, que pode "filtrar" o que os jornais interpretaram como informações insalubres (“unhealthy information”). Um eufemismo para software censor. Certamente um bom negócio para quem o vender, pois lá se espera comercializar 40 milhões de PC/ano. Uma invasão de privacidade cometida em nome dos bons costumes chineses.
Na França, como saber quando se estará acessando indevidamente um site que não respeita legislação de propriedade intelectual? Provavelmente, mediante invasão, em nome dos bons costumes franceses; neste caso a justificativa estaria no combate à pirataria.
No Brasil está em discussão projeto que transformaria os provedores de acesso à Internet em dedos-duros virtuais, na terminologia rude dos críticos do projeto aprovado no Senado. Na Câmara, encontra-se em andamento outro projeto que tenta copiar a lei Hadopi. Numa primeira leitura do texto, tem-se a impressão de uma pirataria mal sucedida da polêmica lei francesa.
O reconhecimento do livre acesso à Internet como um direito individual fundamental cresce em importância e significado, juntamente à expansão da Grande Rede. O adequado tratamento desta questão é indispensável à solução dos conflitos sobre acesso a bancos de dados, download de arquivos, compartilhamento do conhecimento, propriedade intelectual e matérias desse gênero.
É inegável que a difusão da Internet provoca situações e problemas novos. Mas, por vezes, as soluções punitivas propostas sugerem uma analogia com as reações dos eruditos do século XVI que, no início, consideraram o livro impresso um instrumento de perversão da sociedade. E não um veículo do conhecimento.
Diante de impulsos obscurantistas incontidos, cujas consequências podem recair sobre muitos milhões de inocentes internautas grampeados, o ideal de liberdade assume um caráter subversivo.
Mais uma vez.
Publicado na Folha Dirigida de 21/07/2009
Labels: lei e Internet
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